Vilmar de Amorim Ferreira, 63 anos, é um dos trabalhadores que ganham a vida às margens da rodovia
Sentado sobre um galão de tinta coberto de jornais velhos, Vilmar de Amorim Ferreira, 63 anos, apoia os tênis impecavelmente brancos sobre um papelão disposto no chão. O esmero evita olhares de desaprovação de quem o contrata para auxílio nas mais diversas entregas. Ele é “chapa” e há mais de 40 anos trabalha com carga e descarga de caminhões que chegam a Porto Alegre somente com o condutor.
— A cabine é a casa do caminhoneiro. Não posso sujar, tenho que estar bem vestido. Às vezes, ele está com a esposa, então ali é o lugar que carrega a família — define, enquanto ajeita a manta e a touca, acessórios para encarar os 8°C do amanhecer de quarta-feira (21) na Região Metropolitana.
O morador de Canoas tem na informalidade o sustento da casa, enquanto tramita na Previdência Social o pedido de aposentadoria. Orgulhoso, vê no sucesso dos filhos a recompensa do trabalho iniciado ainda na adolescência.
— Tenho uma filha formada em Radiologia, outra dona de empresa e ainda um filho bem empregado em uma metalúrgica. Conquistei tudo trabalhando de chapa, sempre com trabalho honesto — conta, antes de ser interrompido por um motociclista que estaciona no canteiro em busca de informações do caminho até Alvorada.
No ponto escolhido para tentar a sorte diária — embaixo do viaduto de acesso ao bairro Fátima, em Canoas —, duas placas afixadas em uma árvore e um poste de concreto anunciam os seus serviços. Pendurada em um galho, a surrada mochila preta protege o lanche da manhã: três pequenos pães tipo brioche e duas cocadas, que, por sua insistência, são divididas com o repórter.
— Come, prova. Não é bom? — questiona retoricamente.
Tão insistente quanto Ferreira são os automóveis que paravam no recuo da BR-116 o procurando na manhã desta quarta. Às 7h30min, conquistou R$ 160 de um carreteiro que trazia duas toneladas de telha de Erechim, no norte do Estado.
— Sempre pegamos chapa, porque eles conhecem muito bem as ruas. É a primeira vez que vou entregar telha dentro da cidade. Se entro em uma rua errada, arrisco ficar trancado ainda — explica Joel Pedro Saccomori, 27 anos, que segue o trajeto com Vilmar a seu lado, após se certificar que ele conhece os endereços das notas fiscais.
Rodovia é escolha de dezenas de trabalhadores
Repleta de automóveis de carga, a rodovia que cruza o Vale do Sinos em direção à Serra é a escolha de outros dezenas de chapas, que se protegem sobre as elevadas ou nos postos de combustíveis. Carlos Roberto Fagundes, o Carlão, 43 anos, é figura conhecida em Sapucaia do Sul.
— O pessoal do posto já tem meu telefone e, quando pedem indicação, eles me ligam. E tem outras firmas que me telefonam no fim de tarde — explica, ao contar que já ouviu de um “patrão do dia” a história de um homem que se passou por chapa, pegou R$ 50 adiantado com a justificativa de ter de comprar gás, mas nunca apareceu para o serviço.
De olhar atento e ouvido treinado a identificar o som do rodado no asfalto, também tenta a féria do dia às margens da BR-116. Ao avistar o alvo, abana com o tradicional sinal do dedão erguido e a palma da mão fechada.
— Se o motorista chega no destino sozinho, a empresa fala: “Se vira”. Eles não colocam a mão em nada. E o caminhoneiro tem pressa, pois logo tem outro frete — afirma, com a experiência de quem já fez até viagem internacional no banco do passageiro e conheceu a Argentina.
Quem avista a cena dos homens que perseguem veículos com o dedo em riste, crê se tratar de andarilhos em busca de carona. Ledo engano. Há inclusive uma tabela informal, definida por peso ou pela quantidade de unidades descarregadas. Uma caixa leve rende cerca de R$ 0,40. A tonelada pode render até R$ 20.
Em pé, ao lado de um caminhão-baú que fora seu endereço nos últimos dois dias no Litoral Norte, Marco Antônio Rosa, 53 anos, não se deu ao luxo de descansar após carregar mais de 1,5 mil caixas. O pagamento foi previamente acertado por turno.
— Cobrei R$ 120 por dia para descarregar as caixas com alimentos em Capão da Canoa. Mas era tudo levinho, uns cinco quilos cada — conta, acrescentando que, apesar do trabalho pesado, está com sorte, pois “tem dias que não se ganha nada”.
Ainda mais convencido do êxito na profissão, Antônio Luís Soares, 56 anos, tem trabalho fixo. O lucro menor é compensado pela certeza de receber todos os dias: as diárias pagas são de R$ 70, quase metade de quem “trabalha na pedra”, como define os homens que vão para as ruas à caça de algum bico.
— É pouco, mas dá pra sobreviver — conta.
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) afirma que “não há nada de irregular” no trabalho dos chapas. A corporação pondera que “estacionar sem motivo no acostamento é passível de multa”.
Fonte: GZH