Estrada Porto Velho-Manaus: Rota de Queimadas e Desmatamento


Reportagem de ÉPOCA percorre BR 319 que cruza a floresta amazônica, um trajeto de 880 km que dá a dimensão dos problemas enfrentados na região

Vista de cima, a Rodovia Álvaro Maia parece rasgar a floresta amazônica para ligar as capitais de Porto Velho e Manaus. Mais conhecida como BR 319, a estrada quase toda de barro se estende ao longo de 880 quilometros entre parques, estações ecológicas, vilas e cidades que povoam o coração do maior estado do Brasil. É também um microcosmo das agressões feitas à floresta que chocaram o mundo, uma rota pontuada por queimadas e pela extração ilegal de madeira. Ao longo de quatro dias, ÉPOCA percorreu boa parte da rodovia.

Partindo de Porto Velho, a reportagem entrou na BR 319 assim que cruzou a ponte sobre o Rio Madeira, um trecho que duraria até a chegada na cidade de Humaitá, já no Amazonas, que também é banhada pelas águas do rio.

Bastante castigada pelas chuvas, a estrada de terra tinha pouco movimento. Araras sobrevoavam o carro e animais atravessavam a pista cercada por uma densa vegetação, que escondia o desmatamento ao redor.

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Por trás da parede de árvores, as imagens feitas por um drone registraram os grandes clarões — fruto do trabalho de madeireiros, em sua maioria ilegais, e das queimadas naturais e artificiais que castigam a região durante essa época do ano, marcada pela seca.

Vista de cima, a BR-319 mostra uma série de locais de queimada Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Vista de cima, a BR-319 mostra uma série de locais de queimada Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

A fumaça decorrente do fogo na vegetação está presente em boa parte do trajeto entre as cidades servidas pela BR 319. Nas poucas casas que margeiam a estrada — construídas de madeira de seringueiro — foi possível observar tambem queimadas dentro das propriedades.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Imazon mostraram que 2019 teve um aumento no desmatamento em toda a região amazônica.

Além dos incêndios naturais, a região também é devastada por conta da ação do homem, que usa o fogo para queimar a vegetação local e assim fertilizar o solo. Com isso, as propriedades se tornam aptas à pecuaria e ao cultivo de soja.

A extração de madeira também castiga a floresta do local, especialmente por conta da ação dos chamados “toreiros”, que carregam grandes quantidades de madeira, seja ela legal ou ilegal. Colocada em caminhonetes e caminhões de péssimo estado de conversação — alguns até sem placa — a madeira costuma ser transportada durante a noite.

Os chamados caminhões 'toreiros', que fazem o transporte de toras de árvore Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Os chamados caminhões ‘toreiros’, que fazem o transporte de toras de árvore Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

A prática que conta com pouca regulação faz parte da economia local, como na pequena cidade de Realidade, onde ÉPOCA parou durante o trajeto.

Pólo de madereiros e grileiros, Realidade fica um pouco depois da cidade de Humaitá na direção de Manaus, e é uma das últimas paradas antes da chegada em Igapó Açu, a centenas de quilômetros de distância.

É lá que vive Nilza Francisca Santana, uma das moradoras mais antigas da região. Vinda de Cuiabá, dona Nilza se estabeleceu em Realidade em 1972 após percorrer boa parte da Região Norte de ônibus. Foi na cidade que ela criou seus oitos filhos e, destaca, sem que fosse preciso agredir a floresta.

“Nunca precisei vender um palmo de madeira ou de ouro para criar meus filhos. Nunca vi isso como uma forma de sustento, a floresta já oferece muito para nós”, explica. Ela destaca, porém porém, que a ação dos madereiros, grileiros e caçadores têm transformado a paisagem da região. O que antes era repleto de castanheiras e árvores locais foi dando espaço a pastos vazios. “Estão acabando com tudo”.

Dona Nilza, moradora de Realidade desde 1972 e que chegou antes da construção da BR-319 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Dona Nilza, moradora de Realidade desde 1972 e que chegou antes da construção da BR-319 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

ROTA DO DESMATAMENTO

Quase intransponível durante a temporada de chuvas, a BR 319 foi criada na ditadura militar em 1974 como parte de uma série de projetos de integração regional. Originalmente pavimentada, ela ficou abandonada por décadas. O cuidado só voltou após uma concessão do governo de 2015 que permitiu a manutenção de certos trechos da rodovia.

Ainda assim, mesmo esses trabalhos de manutenção levantam críticas por conta de suas técnicas utilizadas. Ao longo do trajeto percorrido era possível observar duas delas, que deixam marcas na floresta que pode levar décadas para se recuperar.

É o caso das chamadas zonas de empréstimos, que são florestas cortadas para que o poder público possa fazer os reparos necessários em um dado trecho da estrada. Como o nome mostra, esses locais devem ter sua vegetação replantada logo após o fim dos trabalhos, o que não acontece sempre.

Trabalhadores que fazem manutenção de alguns trechos da BR-319 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Trabalhadores que fazem manutenção de alguns trechos da BR-319 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

Outras técnicas causam impactos ainda mais duradouros. É o caso do assoreamento de igarapés, pequenos rios que cercam toda a região, desviados para a construção ou o reparo da rodovia. A alteração da paisagem local causa o surgimento de pequenas represas que alagam áreas da mata e as deixam inabitável para árvores de maior porte.

Também não são raros os rios que secam completamente e não fornecem a água necessária para o desenvolvimento da vida no local.

De enorme extensão e com poucos fiscais que contam com baixos recursos do governo federal, BR-319 se tornou um dos centros da atividade ilegal na floresta amazônica. Ainda assim, o governo estuda pavimentá-la, buscando intensificar o escoamento comercial na região.

Deputados e vereadores já fizeram o trajeto nos últimos anos em nome da causa, que levanta preocupações da população local e de especialistas, que temem que o asfalto seja utilizado para um aumento do desmatamento e como um facilitador para ações de madeireiros, grileiros e caçadores.

(Colaborou Daniel Salgado)

Fonte: Época

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