Erro de cálculo no pedágio fez motoristas pagarem bilhões a mais, diz Agepar


“Todos os cálculos relacionados ao sistema estadual de pedágio terão de ser refeitos, desde o início da concessão, em 1997. A Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Paraná (Agepar) acredita que encontrou uma falha na forma como as contas foram efetuadas ao longo dos anos e determinou que o trabalho seja refeito pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Caso as suspeitas da Agepar se confirmem, seria um rombo bilionário, com consequências a favor dos usuários das rodovias, que a essa altura dos contratos – faltando dois anos para o fim do prazo – só poderia ser compensado com redução de tarifa.”

“A questão envolve uma complexa engenharia matemática, a partir de conceitos contábeis, econômicos e financeiros, como fluxo de caixa e Taxa Interna de Retorno (TIR). O ponto de partida é um dos documentos que fazem parte dos contratos de concessão assinados em 1997, o anexo 8, que estabelece uma bonificação em caso de realização de algumas obras pré-definidas. Esse adicional teria sido considerado na expectativa de receita das concessionárias e teria tido efeito positivo para as empresas ao longo do contrato mesmo quando as obras não foram executadas.”

A Gazeta do Povo entrevistou quatro especialistas em pedágio que concordaram em colaborar com a reportagem, mas pediram para não terem os nomes revelados ou porque trabalham em empresas de outros estados ou porque não tiveram acesso a todos os detalhes necessários para se posicionar sobre o caso em específico. Todos foram unânimes em afirmar que somente o retrabalho poderá mostrar se houve erro nos cálculos. Também destacaram que é preciso confirmar se esse aspecto não foi resolvido em aditivos contratuais e preveem uma longa discussão jurídica sobre o assunto.

A arrecadação com pedágio no Anel de Integração foi de R$ 2,4 bilhões em 2018. Estimativas preliminares da Agepar indicam que, caso a falha tenha mesmo sido cometida, nos patamares aparentes, o valor devido pelas empresas seria superior a R$ 3 bilhões. Se houvesse mais tempo de contrato, a compensação poderia ser feita por meio de antecipação ou inclusão de obras. Contudo, no cenário atual, só haveria prazo para a “devolução” de dinheiro, por meio de redução de tarifa ou, eventualmente, depósito bancário, compensação em bens ou prorrogação da prestação de serviços sem cobrança.

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Conceitos técnicos

Para entender o que está será reavaliado no pedágio do Paraná é preciso compreender os termos envolvidos nesse tipo de contrato (vale conferir o infográfico explicativo aqui). A expressão que mais importa para as empresas interessadas em uma concessão é a Taxa Interna de Retorno. Muitas vezes confundida com lucro, é a TIR que define se vale a pena investir no negócio. Ela precisa ser maior que os juros do mercado (ou o dono do dinheiro optaria por uma aplicação mais conservadora e segura).

Em 1997 – num cenário econômico conturbado, com inflação e juros bem mais altos do que os atuais –, as empresas se interessaram pelas concessões de rodovias do Paraná, que ficaram com TIRs entre 16,43% e 19,29% (variando em cada um dos seis lotes). A partir de aditivos contratuais, nos anos de 2000 e 2002, as taxas passaram a patamares entre 17,40% e 20,15%. Para se ter uma ideia, os pedágios federais implantados no Paraná em 2007 (portanto, dez anos depois dos contratos do Anel de Integração) tiveram TIR de 8,65% – a metade do percentual praticado no sistema estadual. Em alguns contratos negociados na gestão Dilma Rousseff a TIR chegou a 6% e depois voltou à casa de 9% (ainda bem acima da inflação, para ser atrativo para investidores).

Também no início do contrato, foi estimado um fluxo de caixa principal – uma previsão de receita e despesas. Essa conta foi feita partindo do pressuposto que a bonificação (chamada de degrau de pista dupla) seria aplicada. Ou seja, considerou que era líquido e certo que, a partir de um determinado momento, a arrecadação das empresas iria aumentar consideravelmente. E é essa previsão de caixa que é sempre considerada na hora de calcular o retorno financeiro para as empresas.

Essa técnica envolve conceitos das áreas contábil, econômica, financeira e matemática. Ela é aplicada em situações em que o investimento anual pode ser maior que a receita, principalmente em casos de longo prazo. Assim, no início das concessões, as empresas gastaram mais do que receberam (construíram praças de pedágio, compraram equipamentos e fizeram obras). Ou seja, fizeram investimentos que seriam remunerados no futuro (uma vez que a receita da cobrança daquele ano era menor do que o necessário para bancar as contas e foi necessário captar dinheiro, com investidores e/ou financiamentos).

A descoberta

O anexo 8 dos contratos de concessão estabelecia que se uma obra específica (geralmente duplicação, daí o nome degrau de pista dupla) fosse realizada até um determinado ano, a praça de pedágio mais próxima receberia uma bonificação, em forma de aumento da tarifa básica. Mas a maioria das obras acabou não sendo realizada – portanto, a elevação prevista não foi aplicada. O que pareceria uma “punição” para as empresas acabou sendo uma vantagem.

De acordo com o entendimento da Agepar, as concessionárias foram contempladas com uma compensação nos processos de reequilíbrio econômico-financeiro, com aplicação de um reajuste maior para atingir o fluxo de caixa previsto inicialmente. Assim, a bonificação que seria dada na tarifa básica apenas da praça próxima à obra estipulada era distribuída, de forma diluída, por todas as praças da concessionária, mesmo que o projeto esperado não tivesse sido executado. Boa parte das obras que gerariam bonificação foram alvo dos aditivos contratuais feitos durante a gestão Jaime Lerner, nos anos de 2000 e 2002. As duplicações foram excluídas, adiadas ou trocadas por outras obrigações.

A questão foi levantada por Thiago Petchak Gomes, gerente de Regulação Econômica e Financeira da Agepar, economista aprovado no concurso feito pela agência no ano passado, mas que não tiveram os cargos nomeados ainda. Aqui é importante fazer uma ressalva: a fiscalização dos contratos de pedágio ficou, ao longo da maior parte da concessão, a cargo do DER. Somente em 2011 a agência reguladora – que é para ser um organismo independente, sem interferência política – foi formalmente criada. Contudo, a Agepar ainda está em processo de estruturação e só recentemente passou a regular os contratos de pedágio e de outros serviços delegados, como água e esgoto e transporte público intermunicipal.

A Agepar publicou uma resolução normativa, alertando para a necessidade da revisão das contas do pedágio a partir do degrau de pista dupla, e também uma nota técnica detalhando o entendimento sobre o caso. Os técnicos da agência reguladora destacam que há situações, também, de desequilíbrio a favor das concessionárias, como é o caso da isenção de eixo suspenso de caminhões, que devem ser compensadas, mas seriam proporcionalmente menores que as supostas distorções causadas pelo degrau de pista dupla.

A atual gestão do DER afirma não ter responsabilidade pelas decisões tomadas em governos anteriores e que vai fazer todos os esforços para seguir a determinação da Agepar. O diretor-geral do DER-PR, Fernando Furiatti Saboia, não contestou a decisão da agência reguladora, partindo do princípio que se tratava de algo conceitual, na área econômica, que precisa ser verificado. “Já que a Agepar chegou a esse entendimento, nos cabe fazer os cálculos.”

Uma força-tarefa foi escalada para começar as contas com os técnicos disponíveis no DER, mas Furiatti vai incluir a demanda no termo de referência de uma licitação que deve ser publicada em setembro, visando contratar uma empresa para avaliar diversos aspectos do contrato de concessão de rodovias. O trabalho deve levar meses com os servidores, como economistas e contadores, e a contratada só auxiliará a partir de 2020. Sobre o passado, o DER informa que os responsáveis pelos cálculos não fazem mais parte do DER – ou foram presos ou se aposentaram. O trabalho também foi feito, em alguns períodos, por funcionários terceirizados, de empresas contratadas, que não estão mais acessíveis.

Questões políticas e jurídicas

Quando parecia que a confusão envolvendo o pedágio no Paraná não poderia aumentar – depois de levar gente para a prisão e de resultar na redução de tarifas por causa da confissão do pagamento de propina – um ingrediente é adicionado à trama. É que sempre foi um trunfo das concessionárias recorrer à chamada segurança jurídica e falar que estava previsto em contrato deveria ser cumprido. O degrau de pista dupla, estabelecido no anexo 8, é parte desse contrato original.

Ainda não é possível saber se o caso não foi percebido no passado ou foi propositalmente ignorado. A Gazeta do Povo buscou contato com ex-diretores que estavam à frente do DER-PR em momentos cruciais da gestão do contrato de concessão de rodovias, mas não houve resposta. O espaço segue aberto caso algum dos gestores queira se pronunciar sobre a forma como foram realizados os cálculos relacionados ao pedágio ao longo das últimas duas décadas.

As concessionárias tomaram ciência da apuração da Agepar a partir da publicação dos documentos no site da agência reguladora. Procurada pela Gazeta do Povo, a Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR) se manifestou em nome das empresas, informando que espera que os atos da agência reguladora respeitem “o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, os atos jurídicos perfeitos, a ampla defesa e o contraditório. Também reitera que as concessionárias do estado acatarão, como sempre, as decisões do poder concedente e estão abertas ao diálogo com todas as partes.”

A discussão sobre o degrau de pista dupla ter sido considerado no fluxo de caixa é inédita – nunca apareceu em nenhuma das inúmeras vezes que os contratos foram alvos de questionamento. Os órgãos de controle já demonstraram interesses da reavaliação das contas do pedágio, a partir do novo entendimento. Em reuniões realizadas com técnicos da Agepar, representantes do Ministério Público Federal (MPF) e dos Tribunais de Contas da União (TCU) e do Estado (TCE-PR) disseram que vão esperar os resultados do trabalho e, se confirmadas as suspeitas, pretendem agir para garantir o ressarcimento aos usuários.

O que acontece agora?

A revisão sobre o degrau de pista dupla atingirá cinco das seis concessionárias que atuam no Anel de Integração, sistema de rodovias pedagiadas do Paraná com 2,5 mil quilômetros de extensão. Somente a Ecovia, responsável pela BR-277 no trecho entre Curitiba e o Litoral é que não tinha nenhuma grande obra prevista, de interesse do poder público, listada no anexo 8. O documento que embasa o questionamento, e que faz parte do conjunto do contrato assinado em 1997, só foi divulgado no site do DER agora, depois que a Gazeta do Povo questionou a dificuldade de acesso ao conteúdo, o que caracteriza de falta de publicidade.

A Agepar vai contratar uma empresa para fazer uma auditoria no contrato das concessões, incluindo questões como os itens considerados no reequilíbrio econômico-financeiro. O objetivo da contratação é ter um check list completo do que precisa ser cobrado das concessionárias para garantir o encerramento adequado dos contratos.

O perigo que vem da Justiça

Cada vez que uma liminar é concedida (e foram dezenas nos últimos tempos) determinando a redução de tarifa ou alguma outra medida que afeta a operação das concessionárias, há a possibilidade de isso custar ainda mais caro para os usuários. As decisões são temporárias, sem análise de mérito (em termos jurídicos, sem avaliação do pedido, sem abertura de prazo para entrega de provas ou para tomar depoimentos e sem apresentação do contraditório). No Judiciário, a liminar tem a função de “estancar uma sangria” (interromper uma prática irregular para evitar mais prejuízos). Contudo, quando a irregularidade não está comprovada – ou pelo menos o tamanho do problema não está numericamente dimensionado – uma redução na receita das empresas pode motivar pedidos de reequilíbrio financeiros que costumam ser ainda mais prejudiciais aos usuários.

Fonte: Gazeta do Povo

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